terça-feira, 13 de abril de 2010

Homo Anime




Eram duas forças. Uma se manifestou num corpo alto, possuidor de força. A outra se manifestou em forma de mente, moldou um corpo pequeno, possuidor de inteligência. Ambos voluntariosos, competitivos, dispostos ao poder... e podiam moldar o real de acordo com suas perspectivas.

O corpo1 materializou um imenso martelo, no qual esmagou a cabeça de seu adversário. O corpo2, humilhado, vendo seus miolos esparramados no cenário ainda em branco, espremeu um ódio em seu olho esquerdo, que ainda pulsava.
O corpo1 moldou cadeira de praia, mar, vento, sombrero, um figurante que lhe veio servir um delicioso almoço. Pão, mortadela, tomate, peixe, pão, carne, alface, pão, milho, frango, 4 queijos, tudo que uma mente podia projetar para alimentar um corpo em processo de manifestação.
O corpo 2 recolheu seus fragmentos e se reformulou. Com seu olho esquerdo, sempre pulsante, observou a imensa bocarra que iria engolir toda aquela comida. A comida que nutriria a existência de seu inimigo... e também a sua, caso ela fosse roubada!
O corpo 2 manifestou velocidade, invadiu o espaçotempo entre a bocarra e a pilha de comida, e a devorou em milésimos de segundos. Depois ficou a rir da cara pasma do corpo1, assombrado de como aquela criaturinha tão pequena podia comer tamanho alimento e afrontar o seu poder.
O corpo1 materializou ressentimento, projetou um arma de fogo e voltou a estourar os miolos do corpo2. Um rosto disforme ficou borrado no cenário em construção.
O corpo2 desejou vingança em segredo, se calou e arquitetou planos secretos. Moldou terra, jorrou água sobre ela e construiu um sol, para que tudo ficasse lindo, e aguçasse a inveja do outro.
O corpo1 não deixou por menos, ali moldou um pomar, para que alimentasse seu porte, que revigorasse sua força e lhe agraciasse com as sombras. Entre galhos grosseiros, estendeu uma rede, para descansar o corpo-poder.
O corpo2 plasmou as flores, para que alimentasse sua mente, que revigorasse seu espírito e descansasse sua mente de vigilia . E entre as mais belas, ele anexou os espinhos, para que o outro se ferisse caso desejasse lhe roubar as flores.

E por causa do encantamento das flores e da propriedade dos frutos, corpo1 e corpo2 se uniram... para construir um muro entre eles! Corpo1 materializou os tijolos e cimento, corpo2 projetou a estrutura e calculou as dimensões. Juntos ergueram a barreira entre eles.
No cenário agora bipartido, cada qual reinando seu mundo, as dimensões foram desenvolvendo-se. O cenário se expandia na medida em que cada corpo-mente necessitava proteger o seu lado do muro, manter seus dominios.
E o muro lá permanecia sólido, significativo. Testemunhava a obra que se estendia desde sua criação.
Corpo1 manipulou os átomos, cristalizou coisas, exércitos, agricultura (para alimentar os exercitos), industria (para forjar mais armas), pessoas (para o trabalho).
Corpo2 manipulou os pensamentos, cristalizou idéias, seguidores, filosofia (para alimentar suas expectativas), teorias (para forjar mais doutrinas), pessoas (para acreditarem nele).
Ali ficaram eternamente aquelas duas forças debatendo-se, se corroendo, vingando, erguendo monumentos ao poder, matando, roubando, seduzindo, não morriam nem renasciam, mas se transfiguravam conforme se estendia o cenário...

E muita gente ali nascia e morria para dar forma e alma a todos os desejos deles. Uma multidão de rostos frágeis, disformes, uns vencidos, outros revoltados, alguns ainda emanavam inocência, e muitos nem se davam conta de sua própria existência escrava. Simplesmente ali marchavam¸ davam rumo aos projetos dos que mantinham o muro.
Corações sucumbiam, destinos morriam, juventudes corroídas, mãos mutiladas, infâncias roubadas, mentes ocupadas, sonhos desfeitos, dentes mecânicos, ossos sangue e máquinas... tudo ia sendo criado por eles e protegido pela manada que formigava ao redor do muro.
Neste cenário, governado por forças que se unificam para fragmentar o real, para que este real jamais fosse visto, entendido ou compreendido, eles moldavam o seu todo. Assim asseguravam suas existências, suas fronteiras, suas palavras, sua historia, sua herança, suas razões, seus deuses, seus jardins e seus pomares.
Neste cenário, mantido por forças que se fragmentam para iludir o real, para que este real jamais fosse encarado, enfrentado ou destituído, a manada protege o todo deles. Só assim asseguram suas existências, seus empregos, seus corpos, seus filhos, suas mulheres, suas vielas, seus semi-deuses, seus sonhos de terra, comida,liberdade.
E o muro lá, rígido, inerte... esperando que um dia alguém lhe cavocasse brechas, para espionar como lutam e sobrevivem o dono das flores, o proprietário dos pomares e os trabalhadores da terra.

O tempo gerou aqueles que habitavam em cima dos muros. Que parasitavam as relações de conflito. Podiam ser corpos e/ou mentes, conforme fosse da inteligência de sobrevivência. Mediam os tremores da terra, inventaram os sismógrafos para determinar de qual lado lutar quando o muro tremesse. Não enfrentavam as dualidades, mas sorriam para elas de acordo com seus desejos. Se destruíam, ou se criavam... pouco importava, queriam permanecer.
Até que sobreveio as abelhas. Como algo que escapasse ao poder dos donos da terra, que fugisse do medo dos trabalhadores da terra, pois que elas podiam sobrevoar todos os domínios entre o muro. As abelhas sabiam visitar as flores, sabiam sugar os frutos, e tinham veneno para dar febre ao corpo dos que construíam o muro. Não podiam destruir o muro! Não porque não acreditassem nisso, mas porque para elas o muro não tinham importância alguma, não representavam nenhuma ameaça. Sobre ele elas voavam, e deixavam seus cheiros no vento.
A colméia viva, feito pensamento novo que põe medo nas estruturas até então feitas e acreditadas, ameaçou o poder e o significado do muro. Então o senhor das flores e o imperador das árvores, novamente se uniram... para inventar os pesticidas! Disso resultou que os trabalhadores da terra agora estavam armados de bombas de venenos.

E nesta roda de criaçãodestruição, corpos, mentes, trabalhadores, flores, frutos, abelhas, giravam num contexto sem fim. Uns aprisionavam, vinham outros e libertavam, surgiam outros que reconciliavam, muitos burocratizavam, depois nasciam os que novamente separavam... todos comiam dialética, todos se movimentavam no fluxo das dualidades.

Mas ninguém ousou destruir o muro. De todos os lados, ou sobre ele, ninguém tinha coragem o suficiente de perfurar o muro e adorar tanto as flores quanto as árvores, ou mesmo escutar o zumbido das abelhas!

Cernov